Eu estava na parada de ônibus após sair da universidade,
como faço costumeiramente no horário do meio dia. Peguei o ônibus, que naquele
momento encontrava-se relativamente lotado, e procurei um lugar do lado da
janela em que eu pudesse sentar para assim poder colocar meus fones de ouvido e
dessa forma apagar todo o barulho exterior: conversas irrelevantes, a rádio tocando as clássicas músicas do rei e o
barulho da lataria velha do ônibus. Olhei para todas as cadeiras e todas as que
eu procurava estavam ocupadas. Um pouco atarantada, tentando organizar minha
bolsa e ao mesmo tempo tentando equilibrar-me, tendo vista que o ônibus já
havia entrado em movimento, um senhor de cabelos bem grisalhos me oferece a
cadeira que se encontrava vazia ao seu lado. Certamente, ali não seria um lugar
que eu escolheria sentar, pois não tinha janela, mas aceitei a boa gentileza
daquele senhor, não custaria nada sentar ali por míseros quarenta minutos do
meu dia. Sentei e tentei aceitar aquele lugar apertado e quente: estiquei as
pernas, coloquei o caderno embaixo da bolsa e fui tentar iniciar a leitura de
uma pequena apostila que eu carregava comigo.
O ônibus tremia
muito e o barulho começou a se tornar um pouco insuportável. Pensei em abrir
minha bolsa e tirar meu celular e meus fones e seguir com meu hábito que é
quase um ritual no coletivo, mas quando volto meu olhar para o meu companheiro
de viagem, reparo que ele me observa com um olhar muito questionador. Seus
ombros são caídos e seus olhos não demonstram tristeza ou cansaço por causa da
idade, mas ele continua me olhando como se procurasse algo em mim. Eu me
incomodo e volto atrás da decisão de colocar os fones. Procuro outra distração,
olho para o vidro que me tranca pelo lado esquerdo e tento admirar a paisagem,
a mesma paisagem que vejo seis vezes por semana há quatro anos.
Quando penso que estou segura por saber que estou em
um território conhecido e que meu silêncio não dá abertura a nada, sou
surpreendida com uma pergunta que estremeceu meu coração. Ele me perguntou se
eu era estudante. A resposta saiu quase emudecida pelo meu medo. Os olhos
daquele homem penetram os meus, parece que ele já sabia a resposta, e ele nem
se importou com minha resposta, olhou à frente e começou a falar sobre uma
reportagem vista no dia anterior. Ele nem quis saber se eu tinha conhecimento
ou não da tal reportagem (tratava da história de um rapaz que teve que
trabalhar a vida toda como vendedor de balas e que havia se formado em
medicina), mas ele continuava falando.
Enquanto eu observava seus lábios mexendo, sua boca abrindo
e fechando revelando uns poucos dentes amarelados que lhe restaram após longos
anos, enquanto eu me esforçava para entender suas palavras, comecei a pensar no
quanto deixamos de simplesmente ouvir as pessoas. A rapidez com que andamos e a
quantidade de deveres que temos que cumprir fez com que deixássemos de ouvir o
que as outras pessoas têm a nos dizer. Muitas vezes estamos tão concentrados
lendo as mensagens no celular que deixamos até de atentar a um “bom dia” que alguém
nos deseja ao passar por nós, e nem se quer levantamos o olhar para responder e
desejar de fato um bom dia a alguém, apenas respondemos como uma forma de
“educação” já internalizada em nossa cultura. Ele continuava falando, me
contando um pouco da sua história, sobre como começou a estudar, sobre seu
emprego, sobre como conseguiu vencer na vida, mesmo com pouco estudo, sobre as
honras que seu esforço tinha lhe oferecido. Ele não se importava se eu estava
ou não entendendo ou querendo ouvir o que ele estava dizendo, ele apenas queria
falar, queria dizer para alguém o quanto que a leitura havia lhe ajudado. Ele
olhou nos meus olhos, segurou no meu antebraço que estava esticado enquanto eu
me segurava na cadeira da frente e me disse que quando eu tivesse um
tempinho, deveria ler um livro, mesmo que não fosse um dever meu. Ele não sabia
que eu seria uma professora, e de literatura, e que os livros são meus
companheiros de jornada, mas ele queria dizer para alguém: “leia”.
Enquanto eu estava perdida nesses pensamentos e enquanto
ele falava, sua parada se aproximava e ele começou a se levantar para descer.
Eu percebi que eu precisava saber quem ele era apesar de ele se quer ter
perguntado o meu nome. Quase que de uma forma desastrada perguntei seu nome.
Ele se espantou com essa atitude e me disse seu nome completo como se eu
indagasse o motivo daquela conversa, ou como se ele precisasse dizer seu nome
para preencher um cadastro. O ônibus fez um barulho horrível ao frear e eu não
consegui ouvir como ele se chamava. Mas nem preciso saber, o que eu precisava
entender eu já havia entendido: algumas pessoas só querem ser ouvidas.